amores expresos, blog do Daniel

Dé hAoine 5 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Um

Balor1 [quarta-feira, 03/10/07]
Onde o narrador se encontra com a versão contemporânea de um antagonista mitológico, vence a adversidade e apreende as propriedades mágicas da falta de sono


Hoje choveu em Dublin, mas o céu abriu e ficou azul assim que entrei no ônibus que me levou do aeroporto à parte norte do centro da cidade.

Mas não foi assim tão simples.

***


Informação relevante: na mitologia irlandesa, mais especificamente nos ciclos relativos aos Tuatha Dé Dannan, existe um sujeito chamado Balor Mau-Olhado, rei dos gigantes Fomori. Páreo duro, o cidadão.

***


Após catorze horas insones nas entranhas de um par de charutos metálicos voadores, acompanhado no primeiro por um comissário de bordo afetadíssimo que parecia um clone holandês do Rocco Siffredi, arrastei meu corpanzil e minha mochila até o guichê da imigração no aeroporto de Dublin. Ali meu passaporte virginal seria maculado pelo carimbo do visto que permitiria minha entrada e permanência em território irlandês.

Só que o funcionário da imigração não dava nenhum sinal de estar inclinado a acreditar que eu estava entrando no país como visitante. É um efeito do recente crescimento acelerado da economia irlandesa: nem o custo de vida altíssimo conseguiu limitar o crescimento da imigração. Das imigrações: legal e ilegal.

Pelo que sondei até agora, quem ganha o troféu da imigração legal são os chineses, os nigerianos e os poloneses. Mas o troféu da imigração ilegal, amiguinhos, é como a Jules Rimet: esse ninguém tira do Brasil, a menos que pretenda derreter. Legiões de brasileiros têm ingressado na Irlanda, quase sempre para "estudar inglês"1, e nunca mais saem. Em Gort, uma cidadezinha próxima da costa oeste da Irlanda, o português brazuca já virou praticamente o segundo idioma local.

Tanta malemolência dos representantes do Bananão deixaram as autoridades aqui da Batatinha em alerta. Uma semana antes da minha viagem, o principal canal de tevê do país exibiu um especial sobre o crescimento do número de imigrantes ilegais. Entre outras coisas, sugeriu que o controle da porteira passaria a ser feito com mais rigidez. A única nacionalidade citada nominalmente como problemática foi a brasileira.

E eu, bem, eu sou brasileiro.


***



Consegui me manter relativamente tranqüilo até o funcionário começar com os golpes baixos.

Eu já tinha confirmado que sim, sou descendente de italianos. Já havia mostrado minha passagem de volta para o Brasil, o seguro-viagem, a reserva da hospedagem, dinheiro, cartões. Respondi onde moro no Brasil, informei a distância exata de Porto Alegre a São Paulo em quilômetros. Confirmei que aquele era realmente meu primeiro passaporte e que estava fazendo minha primeira viagem à Europa. Por algum motivo, meus cheques do Banco do Brasil e meu cartão da Unimed exercem um fascínio inenarrável em funcionários da imigração irlandesa. Deve ser a combinação suada entre verde e amarelo. Também respondi que não, eu não conhecia ninguém no país, em todas as vezes que ele fez essa pergunta. E foram mais de três.

Mesmo assim ele não parecia nada feliz. Balançava a cabeça, repetia no, no, no num tom de voz um tanto funéreo e me olhava nos olhos como se eu fosse o maior aplicador de sambarilove da história da espécie humana. Então veio o golpe baixo:

- Você disse que trouxe x em dinheiro. Mas aqui só tem x-y, o resto está no cartão. Cartão não é dinheiro. Por que você disse que tinha trazido x em dinheiro?

Ah, sai dessa. Era muito malabarismo retórico para minha cabeça totalmente transtornada de sono. Eu estava fedendo a jet lag. Percebi que ele estava jogando verde, tentando forçar uma contradição para ver como eu reagia. "Não estou acostumado a falar inglês" foi a melhor resposta que consegui dar sem recorrer ao "também não precisa apelar pra escrotidão aplicada, bi-chô" que nesse momento já passeava a mil pelas circunvoluções cinzentas do meu melão encefálico.

- Você se confundiu, foi isso? - ele quis saber. Yeah, respondi já sem muito ânimo. Então ele perguntou mais uma vez o que eu tinha ido fazer na Irlanda e senti vontade de voltar pra casa sambando de bombacha em cima de um camelo flutuante.

Todos os passageiros não-europeus do meu vôo já tinham passado pelos guichês, até mesmo a família africana. E eram umas cinco gerações muito coloridas de uma mesma família que parecia apreciar bastante esse negócio de se reproduzir. Aí considerei minhas opções, ambas verdadeiras. Não que isso parecesse fazer diferença. Eu podia apelar para a emoção e dizer "escuta, eu sou casado, minha mulher está grávida e meu filho nasce em dezembro, por que demônios vou querer ficar ilegalmente na Irlanda?"

É, não era uma saída muito inteligente. Vai que o funcionário me achava com cara de alguém que resolveu ganhar uns cobres na Irlanda lavando pints para sustentar mulher e filho no Brasilzão? Sei lá.

Então bueno, a única saída que me restava era fazer o que eu menos queria: explicar o Amores Expressos.

Bastou eu dizer "olha, fui contratado para escrever um livro que se passa em Dublin, vou passar um mês aqui para pesquisar" para a expressão do funcionário se transmutar. Como num clichê de romance esloveno, o antigo funcionário parecia ter se desvanecido em fumos invisíveis e teve seu lugar tomado por um duplo mais bem-humorado. O sósia fanfarrão cruzou os braços, me olhou de novo nos olhos, agora como quem pensa "essa desculpa é nova" e fuzilou:

- Tem alguma prova disso?


***



Obviamente eu não tinha prova alguma, só meu semblante irresistível, minha simpatia lendária e minha conversa envolvente. Mencionei o site do projeto, sabendo que de nada serviria. Que tipo de prova ele queria, um contrato com tradução juramentada? Segurei o away tae fuck, mate que me ejetaria em dois segundos pro amor eterno e os raios vívidos do Braza e encarei o interrogatório com calma. Algumas respostas:

a) Não, eu não me considero famoso;
b) Sim, é provável que meu nome seja familiar para quem se interessa por literatura brasileira contemporânea;
c) Que tipo de livro se escreve em um mês? Olha, vários. Mas não é o caso. Como já falei, estou aqui para pesquisar, lembra?;
d) Não, não fui eu que escolhi Dublin como destino;
e) Desculpa, não lembro todas as cidades de cor. Mas posso tentar. Deixa eu ver: Tóquio, Berlim, Cairo, Buenos Aires, São Paulo, Praga...;
f) Ah, que cidade eu escolheria se pudesse? Olha, acho que Dublin, mesmo, ou...;
g) É que eu gosto muito da Irlanda e da literatura irlandesa.

E a partir da letra g, como costuma dizer meu pároco, fudeu, gaúcho. O funcionário da imigração era formado em Literatura.


***


O dublê esloveno deu lugar a um irlandês realmente simpático e bem falante, deveras empolgado em discutir literatura. Falamos de Swift, Beckett, Wilde, Joyce, Yeats, O'Brien. Sobrou até pro Roddy Doyle. Ele3 acha "The dead" overrated, enquanto eu concordo com a aclamação geral. Não resisti ao ímpeto de corrigir quando ele falou "A decent proposal" ao invés de "A modest proposal". Conversamos sobre minúcias de tradução literária, usando "Ulysses" em português brasileiro como estudo de caso. Ele falou mal de Camus, disse que quase toda a literatura francesa o deixa com uma sensação de perda de tempo e que também não acha a irlandesa grande coisa. Depois me emprestou a caneta e me estendeu um landing card para eu anotar o endereço do site do Amores Expressos. E minha pequena batalha de Moytura terminou assim:

- Ok - ele disse. - Qual dia você volta, mesmo?

- Dois de novembro - falei.

- Então vou dar um visto até essa data.

- Legal. Só preciso disso, mesmo.

- Hein? - bad cop voltou à tona por um segundo.

- Só preciso disso, mesmo - repeti.

- Seu inglês é muito bom - ele disse.

- É que estou com sono.

Aí ele riu e eu entrei oficialmente na Irlanda.

***



Em seguida fui buscar minha bagagem e descobri que, ao contrário de mim, ela não tinha chegado no país.





1 Atenção para a ênfase, por favor. Imagine alguém fazendo aspas com os dedos. Isso, bem desse jeito.

2 Ele, o funcionário da imigração. Roddy Doyle acha overrated a obra inteira do Joyce, não apenas "The dead".

3 Céus, não posso enganar vocês. Na verdade esse não foi nosso último diálogo. Depois que passei pela porteira do Eire, carregando mil coisas nos braços, me agachei para organizar a mochila. Ao perceber que estava com a caneta do funcionário, devolvi.

- Sua caneta - eu disse.
- Oh. Obrigado. Eu gosto dessa caneta - ele respondeu.