amores expresos, blog do Daniel

Dé Domhnaigh 25 Samhain 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Cinco

Conas tá tú? [hoje]
Onde o narrador enfim desiste, agradece e se despede.

Parece que anda chovendo em Dublin depois do outubro mais seco dos últimos cinquenta anos.

Como estou em Porto Alegre há mais de vinte dias, não posso ter certeza.

***


Levei esse tempo todo para me convencer que não existe maneira de resumir neste blog a saga dos pirralhos satânicos em sua tentativa de armar uma gigantesca fogueira de Halloween sem chamar a atenção dos gardaí.

Formiguinhas de Samhain é um episódio dentre muitos que estão guardados para o livro, como tantas coisas que observei em Dublin ou que nasceram das minhas observações e participações fugazes e desajeitadas no cotidiano da cidade. E acho difícil o livro ficar pronto antes do último trimestre de 2008.

Paciência1.

***


É anticlimático, eu sei. Mas fazer o quê? Assim é a vida, isto aqui não é ficção.

***




Tchau, Edgar. Obrigado pelo silêncio. Amigos para siempre etc.

***


E bueno, this weblog è finito. Agradeço a leitura.

Como informa o alerta dantesco numa das paredes que marca um dos trocentos limites invisíveis de Dublin, daki pra frente é com vosseis.



***


Ou não. Imagino que voltarei a postar alguma coisa relacionada ao livro dublinense por aqui, mas vai levar um bom tempo. Para ser avisado quando isso acontecer, a opção mais sensata e cômoda é assinar o feed do blog.

Slán.


***



1 Now, patience; and remember patience is the great thing, and above all things else we must avoid anything like being or becoming out of patience, como nos lembra um dos trechos de Finnegans Wake2 retidos na minha memória catatônica.

2 Mas gosto mesmo, mesmo, é de Flann O'Brien. No saudoso Monty's of Kathmandu, quase fiz o professor de arquitetura da mesa ao lado3 se engasgar quando mencionei que o tio Myles era meu escritor irlandês favorito. Pela reação - HE KNOWS FLANN O'BRIEN! - ele achou o cúmulo do pitoresco um brasileiro conhecer At Swim-Two-Birds. Fazia tempo que eu não me sentia tão Homem-Elefante.

3 Muito simpático, bem falastrão, meio banguela e, dentre outras peculiaridades, divulgador ferrenho de uma teoria segundo a qual a língua portuguesa se originou da love-talk de um rei da França com uma amante espanhola. Algo assim, não lembro bem. Dublinenses.

Dé Máirt 23 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Quatro

Fishygods [segunda e terça-feira, 08 e 09/10]
Onde o narrador exibe sua habilidade contábil, relata sua primeira conversa completa com um nativo e registra ainda outros comentários, inclusive acerca da barba que ostenta neste semestre.


Não sei se hoje choveu em Dublin, porque ainda não levantei da cama para abrir as cortinas.

Mas sei que, como eu imaginava, o descompasso entre a cronologia deste diário e a linha de tempo da viagem ficou gigantesco. Tudo bem, é assim que funciona.

Posso resolver as coisas informando que ontem, segunda-feira, dia 22 de outubro de 2007, caiu a primeira garoinha em Dublin desde que entrei no ônibus do aeroporto.

Meus guarda-chuvas? Dois, por despeito, já foram sacrificados ao Deus do Lixo.

***




Comecei a escrever este post treze dias atrás, mas acabei interrompido por um excesso de idéias para o livro dublinense e pela chegada de Estela, Maria e suas câmeras, que passaram quatro dias na capital da Batatinha1. Muitíssimo bem-vindas, as duas interrupções.

Há treze dias que parecem oitenta e cinco, escrevi o seguinte:



Uma semana calado em Dublin. Não fiquei totalmente quieto, claro. Sempre que digo alguma coisa, porém, registro no meu bloquinho. Assim sendo:

* Falei "sorry" 418 vezes, mas - falha horrenda - não tabulei quantas dessas ocorrências tinham entonação interrogativa.
Sorry;

* "Thank you" e variantes: 381. A última foi após receber a chave do quarto 9 há alguns minutos; a penúltima foi um pouco antes, quando recebi de uma loira barangosa um folheto no qual uma loira fubanguenta exibe a busanfa como se sofresse de hiperlordose. Vale uma
lap dance grátis no LaPetite, aqui do lado. Gratuitade de puteiro: maior conto de fadas não há;

* Pedi "a pint of cider, please" onze vezes, incluindo variações resmunguentas como "pint o'bullmers pl's". Repeti "no toast, please" e "tea, please" exatas sete. "Curry chips, please", três. "Plain vanilla shake, no malt please", cinco. "China House for teh win", uma. Em voz baixa.

E oquêi, melhor não entediar vocês. Perdão.

De resto, tive quatro conversas completas. Primeiro com Balor, na imigração. Depois com a Sylvia aqui da Lyndon, que é uma excelente pessoa mesmo gostando de Thomas Mann. Considero uma quarta conversa a tentativa de interpretação simultânea da garçonete míope e adorável do China House - belas mãos - quando percebeu que eu não tirava os olhos da programação cantonesa da tevê. E a quinta foi com o Steven, em Howth.


Nestes dez dias já falei bem mais, com diversas pessoas e num punhado de idiomas. Como brincou a Sylvia dia desses, agora eu até tenho voz. Antes eu passava tanto tempo quieto - às vezes dias - que minha voz falhava e saía miudinha quando eu tentava dizer alguma coisa. So much for pathos.

Mas a quinta conversa - e primeira com um irlandês, já que Balor é uma criatura mitológica mesmo sendo funcionário do Estado - foi mesmo com o Steven, em Howth.



***



Um pouco antes de descer do trem, escutei pelo alto-falante o nome do lugar em inglês e gaeilge: Howth, Binn Éadair. Revisei meu arquivo mental para "Irlanda: Dublin: Howth". Encontrei mais ou menos isto:

Atual subúrbio litorâneo de Dublin, antigo porto e aldeia de pescadores, último refúgio dos vikings que ficaram na Irlanda após a derrota para Brian Boru, como era mesmo o nome do rei deles?, o lugar - Howth Castle and Environs - para onde riverrun nos leva por um commodius vicus of recirculation no primeiro parágrafo do Finnegans Wake.

Pronto. Era tudo que eu sabia. Não era muito, mas enfim. Desci do trem.



Ainda que os subúrbios se espalhem por quilômetros, a região central de Dublin é pequena e compacta. Mesmo com prédios baixos, é um pouco sufocante. Não se enxerga o horizonte, não há espaços vazios. Onde não há uma muralha de prédios bem grudadinhos, há uma pororoca de criaturas de todas as formas, tamanhos, cores, indumentárias, religiões e idiomas. É difícil respirar.

Quando abri a porta da estação em Howth, a primeira coisa que enxerguei ao olhar para a esquerda - sinistro vício de canhoto - foi um imenso espaço vazio, tornado ainda mais interessante pelo vento forte, silencioso e gelado que temperava o horizonte cinzento. Menos de dez pessoas à vista.

Eu tinha chegado em casa.

***



Mas o problema é que nunca gostei de mar.

Depois de caminhar a esmo por quase duas horas, subindo escadarias e dando voltas em faróis, comprei um esquifezinho de curry chips e sentei num banco em frente ao mar. Fiquei ali aproveitando o frio úmido, o vento salgado e o tempo ruim, ouvindo os gritos irritantes das gaivotas, comendo batatas fritas com curry e tentando entender por que demônios eu estava gostando do mar.

Tinha chegado ao meu limite. Não conseguiria dar mais nenhum passo se não chegasse a uma resposta satisfatória para aquele mistério. Sei que é patético, não preciso que me digam isso por email. Obrigado. Se você consegue viver sem passar o tempo todo analisando tudo que está vendo, pensando e sentindo, sorte sua.



Mal tinha chegado na metade das curry chips quando um piá sentou do meu lado no banco em frente à praia. Era o Steven.



***



Parêntese para a barba que ostento neste semestre:

Não é uma barba, é um cavanhaque. Meio grisalho, comprido, pontiagudo. Com uns dez centímetros de comprimento, é minha homenagem aos anos 1990.

(Como percebeu minha amiga-cunhada-comadre que escreve poemas épicos sobre piratas em português pseudo-arcaico, Mariana E. Messias: "Daqui a no máximo cinco anos vai acontecer o revival dos anos noventa. Não é um horror? Como conseguiremos viver estando na moda de novo?" Fato. Céus, meu hipocampo ferve).

Essa informação parece totalmente irrelevante, mas não é. Ahhh, como é fascinante A Magia da Escritatm, admitam.

Fim do parêntese para a barba que ostento neste semestre.


***



Nem consegui engolir as batatas.

- HELLO, MISTER! - gritou o pirralho, mostrando covinhas nas bochechas e batucando sem parar.

- Hã. Oi - respondi, quase engasgado. Olhei de soslaio pro guri. Apesar da hipercinesia, parecia comunicativo demais para ser autista. Apesar de visivelmente afetivo, não parecia ter Down. De qualquer modo, claramente não era uma pessoa comum. Aliviado, relaxei.

De repente a batucada parou. Fiquei olhando pro mar. O guri ficou olhando pra minha barba.

- O que é isso? - apontou o dedo pra ponta do cavanhaque.

- Isso? - repeti. Aí pensei "função fática" e sacudi a cabeça.

- É cabelo?

Sorri.

- Sim. É cabelo.

O guri não disse nada, só olhou pra frente e voltou a batucar. Olhei um pouco pros meus pés, depois pro céu e então pras pedras da praia.

- Mister?

- Oi.

- Eu gosto desse cabelo.

- Obrigado.

- Eu gosto desse cabelo.

- Hã. Obrigado.

- Que cabelo legal. Eu gosto.

E recomeçou a batucada.




- Sabe - falei, com uma vontade esquisita de não deixar a conversa morrer. - Quando você for mais velho, vai poder ter um cabelo igualzinho.

- É? - disse o guri sem me olhar nem interromper a batucada. - Igual?

- Igualzinho.

- Legal - aí ele me olhou de novo, com o mesmo sorriso de antes. - Eu gosto desse cabelo.

- Eu também.

Nessa altura senti vontade de sair dali e andar mais algumas horas na direção oposta. Queria fazer alguma outra coisa. Naturalmente, isso fez com que eu começasse a tentar entender por que diabos estava sentindo vontade de fazer alguma outra coisa enquanto estava no meio de uma conversa que por sua vez tinha começado no meio de uma tentativa de entender por que eu estava gostando do mar. Empacado, fiquei olhando pra água.

Aproveitando meu soluço cognitivo, o guri quis saber:

- E você gosta do mar?

Sacanagem.

- Gosto - minha boca respondeu. - É legal.

O guri sorriu e fez um gesto amplo com as mãos.

- Quando você for beeeeeeem mais velho, vai poder ter um mar igualzinho.

Senti uma pressão esquisita nos tímpanos. Uma voz feminina e estridente gritou "Steeeven!" umas quatro, cinco vezes. O guri parou de batucar e se levantou.

- NICE HAIR, MISTER! - disse, e saiu correndo na direção da voz.



***



"Mas putaquioscaiumeuscôrno", pensei. "Isso foi completamente inverossímil".

Aí resolvi que precisava beber.


***



Adentrei completamente estabanado o primeiro pub que apareceu na minha frente, a menos de cem metros do banco. Nem me prestei a calcular quanto tempo fiquei bebendo o mesmo pint em frente a uma janela de onde se enxergava o mar e o a torre Martello da ilhota Ireland's Eye. Precisei ir até Howth para encontrar o primeiro pub em que me senti à vontade.

De vez em quando anotava algumas coisas no bloquinho ou relia outras, amaldiçoando minha caligrafia mutante. Mas na maior parte do tempo fiquei observando um tio barbudo com cara de velho marujo de história em quadrinhos. Gorro, óculos, braços fortes, dedos grossos, um jornal, um pint de Guinness, um jarro com água e limão.

No dia seguinte, sentei na mesma mesa.

***




Que safado esse commodius vicus, bicho.

***


Aproveitei a ocasião para fazer um registro de Edgar, meu fiel escudeiro alado e bicudo, exibindo sua graça e fotogenia em frente às águas gélidas da Baía de Dublin:




Nossa, que pitéu. Foi por conta de semelhantes imagens litorâneas, meus amigos, que se criou a bossa nova.

Aproveito para informar que ele continua mudo. Tudo bem.


***


Sitric. O nome do rei dos vikings que ficaram na Irlanda e se estabeleceram em Howth era Sitric. Lembrei disso ao caminhar pela Asgard Road. Fuck yeah.

***


Levantei da cama e abri as cortinas. Hoje, terça-feira, dia 23 de outubro de 2007, faz sol em Dublin.

***






1 E a gente - Estela, Maria, nossas câmeras e eu - também deu umas voltas pelo interior e seus amoráveis espaços vazios:

Dé Sathairn 13 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Três

Tríonóide [quinta e sexta-feira, 04-05/10/07]
Onde o narrador recua dois dias na linha de tempo e inclui comentários vindos direto do futuro: Não-linearidade! Pós-modernismo! Fragmentação! Hiperrealidade! Foucault! Deleuze! Virilio! Juremir Machado da Silva! Fim do mundo! Nenhuma nota de rodapé! Colegiais católicas!

Hmm. Peraí, falta alguma coisa. Ah:



Pronto. Metanarrativa!

***


Nos dias supracitados, não choveu em Dublin.

Hoje é dia 13 e ainda não vi nem sinal de chuva. Chegou a ficar nublado, mas foi pura enganação. Anda meio quente, também. Dia desses saí de casa mais agasalhado e comecei a suar depois de duas horas caminhando. Hm.

Deu uma chuviscada em Howth num dos dias que passei lá, mas não usei nenhum dos meus três guarda-chuvas. Quando a agüinha caiu, meio preguiçosa, eu estava dentro de um pub, ocupado em anotar coisas e enxugar pints de Bullmers.

Mas estou me atropelando: Howth é o assunto do próximo capítulo deste diário. No que diz respeito a este, Dublin continua seca. Bem sequinha.


***



Desculpem o sumiço, mas é cada vez mais complicado arranjar o que dizer no blog. Tenho mais dois posts pela metade, mas me falta assunto para que fiquem mais carnudos. Não que nada esteja acontecendo, muito pelo contrário. Mas quase todos esses incidentes, observações, comentários e gracinhas eu prefiro guardar para o livro. Certas coisas só podem ser transformadas em texto uma vez, ou correm o risco de se tornarem falsas demais. Espero que entendam.


***



Um homem sério jamais descumpre promessas feitas em notas de rodapé. Não sou exatamente sério, mas por nutrir um grande respeito por notas de rodapé, arrisco um resumo impreciso da geografia dublinense:

Por muito tempo, a cidade de Dublin esteve circunscrita a uma área delimitada por dois canais, partida ao meio pelo rio Liffey (squeezing the life out of the liffey, esse mesmo). Na parte sul, habitada de forma intermitente há dois mil anos, surgiram no século IX os primeiros assentamentos - um viking, outro gaélico - que originaram a cidade moderna. Quando os normandos conquistaram a cidade, quatro séculos depois, vários moradores de ascendência viking resolveram cruzar o Liffey e estabelecer comunidades independentes ao norte. Com o passar dos séculos, o norte também passou a abrigar esconderijos de piratas, asilos de leprosos, cemitérios de enjeitados sociais e, com o domínio inglês no século XVI e a transformação de Dublin em cidade colonial de elite protestante, parte considerável da população católica.

No século XVIII, diversas regiões de Dublin que ainda retinham um traçado medieval foram postas abaixo e reconstruídas em estilo contemporâneo. Foi nessa época que a elite dublinense tentou mudar o eixo da cidade para o norte. Largas avenidas foram abertas, praças foram construídas, pontes surgiram no Liffey - antes disso a passagem era feita por balsas - e ergueram-se casas e mais casas em estilo Georgiano. Esse novo cenário não durou, pois sem o Liffey para servir de obstáculo a população mais pobre começou a passear livremente pelas ruas. O pessoal endinheirado não apreciou muito essa idéia e voltou correndo para o sul, não sem antes transformar as casas em prédios de apartamentos que logo se tornaram cortiços. Assim, se estabeleceu definitivamente certa rivalidade entre um lado norte pragmático e working-class e um lado sul afetado e posh.

Foi nesse lado centro-norte dilapidado que James Joyce e Stephen Dedalus passaram parte da vida. Em Gardiner Place ainda existe o Belvedere College, escola jesuíta onde estudaram autor e personagem. É também em Gardiner Place, a três quadras de Eccles Street, que Dedalus e Leopold Bloom viram uma de suas últimas esquinas a caminho da casa de Bloom no capítulo Ithaca de "Ulysses". E é também em Gardiner Place, numa dessas antigas casas Georgianas, que estou baseado em Dublin. Olá.



Hoje Dublin se espraiou, como diria Olivio Dutra, e não está mais limitada pelos canais. O norte da cidade inclui diversos subúrbios com níveis diferentes de salubridade: uns são bucólicos e aprazíveis, com ruas arborizadas e casinhas que parecem de brinquedo. Outros não passam de coleções de blocos de apartamentos que lembram ruínas, mas devem ter a mesma aparência desde a inauguração. É um cenário de ex-república soviética. Dizem que num desses subúrbios pós-apocalípticos se criam cavalos irlandeses no meio do concreto. Se for verdade e eu descobrir onde é, hei de explorar.

Aqui pela região norte do centro vive uma multidão de refugiados e imigrantes, acompanhados por vários bed & breafkast, três ou quatro strip clubs, prédios reformados, muito comércio e alguns favelões verticais. Mas a região está sendo revitalizada. Entre os junkies deitados nos cantos da Capel Street, entre as famílias inteiras enchendo a cara em Mountjoy Square, entre as crianças satânicas da Summerhill Parade atirando pedras em tudo que se move, entre as pilhas de lixo que não é recolhido entre quinta e terça-feira e acaba espalhado na calçada, entre os Irish travellers que zanzam pela Parnell Street atrás de esmolas, existem vários canteiros de obras. Dizem que a região não está mais tão perigosa quanto era há alguns anos. Acredito.





***


And now for something completely different.




Passei dois dias inteiros fuçando no Trinity College, uma das universidades mais antigas do mundo. Foi fundada pela rainha Elizabeth I no século XVI, para evitar que os protestantes tivessem que deixar Dublin para serem educados. Para obter o espaço necessário para o campus, mandou para o espaço um mosteiro católico bem-localizado.

Jonathan Swift foi reitor de Trinity, onde estudaram Oscar Wilde e Samuel Beckett. Também foi lá que, segundo a biografia na edição em PDF do meu primeiro livre, obtive em 1998 meu PhD em literatura anglo-saxã. Hoje, além de irlandeses endiheirados e um punhado de estrangeiros, estuda lá uma multidão de britânicos que - pelo menos é o que se diz - não conseguiram ser aceitos em Oxford ou Cambridge.




Na primeira vez que cruzei os arcos da vetusta instituição, dei de cara com um burburinho inesperado. Era a semana dos calouros. Dúzias e mais dúzias de alunos e barraquinhas tomavam o pátio da Parliament Square. Diversos clubes e sociedades estudantis se estapeavam em busca de membros. Ao passar pela barraquinha da Trinity Capoeira Society senti vontade de dar uma gingadinha, mas me contive. Por algum motivo, era importante manter incógnita minha brasilidade efusiva.

Toda essa movimentação foi um bom sinal para a história macarrônica que já começava a se emaranhar no meu cérebro. Que parte do livro se passaria no Trinity College eu já sabia, nem que fosse apenas por força da minha obsessão adolescente pelo lugar (e pela Irlanda inteira). Só ainda não tinha muita idéia de como isso ia acontecer, e a Freshers' Week resolveu o meu problema. É durante essa semana que o pessoal da Alles ist vergängliche vai fazer sua primeira aparição. Mais informações sobre a AIV quando o livro for publicado. Ainda vai levar um tempinho. Tenham fé.




***


E logo que encerrei minha primeira visita ao Trinity fiz meu primeiro amigo em Dublin: outro sinal.

O nome dele é Edgar. Fala, Edgar.

(...)

Edgar?





Tá, deixa assim. Como eu e o Daniel Galera, Edgar é um tipo caladão.


***


Good afternoon, sir. I don't mean to be cheeky. Well, I'm homeless. I have no home. Can you please spare some money?

E assim teve início minha primeira interação com os junkies que surgem de repente em todos os lados do centro de Dublin, ao norte ou ao sul do Liffey. Já tinha visto alguns sentados na rua, quase sempre com o rosto escondido pelo capuz do moleton, estendendo copos de papel vazios de moedas. Esse me apareceu no parque St. Stephen's Green, onde resolvi entrar para comer meu almoço. Levemente ruivo, com a fala lenta e pastosa e um abrigo esportivo azul, pareceria mais saudável e limpo que boa parte da população brasileira se não fossem os olhos de personagem de desenho animado.

Levou 20 centavos de Euro. Fez cara feia. Tomara que morra logo.


***



Tem dois barbeiros aqui perto de casa. Um é russo, ou pelo menos de algum país que usa o alfabeto cirílico. Pode ser de Kalmykia, talvez. Hmm. Outro sinal. Ainda não o avistei com meus quatrolhos, apenas a placa me indica sua existência. Não tenho dúvidas que é uma visão transcendente. Passo por lá todo dia a caminho de qualquer lugar, então acabarei conhecendo o cidadão e não conversando com ele. Quanto ao outro, veio de algum lugar do subcontinente indiano. Paquistanês, imagino. Barba espessa e perfeitamente aparada, cabelo lambido, sobrancelhas desenhadas, camisa impecável. Sorridente.

É muito triste ter raspado a cabeça com máquina zero antes de deixar o Brasil.


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Olhei pela janela agora e vi Miles Davis, mas não deu tempo de pegar a câmera.


***



Perambulando nas cercanias da Capel Street, encontrei os primeiros Irish travellers, ou Pavees. Na verdade não foram os primeiros, mas como na O'Connell eu só tinha visto mulheres, ainda não tinha certeza da identificação positiva. Mas ao ver o primeiro sujeito de chapéu, com um bigodão de fazer inveja a Nietzsche, nitidamente usando as mesmas roupas desde 1962, não podia mais duvidar.

Para quem assistiu ao filme Snatch, basta lembrar do personagem de Brad Pitt. Não, não é um cigano. Aquilo é uma representação caricata dos travellers, um grupo nômade muito antigo presente tanto na Irlanda quanto na ilha vizinha. Têm pontos em comum com os ciganos - vivem à parte da sociedade, não têm residência fixa, mantêm sua própria cultura e idioma, têm fama de ladrões e vagabundos etc - mas são de outra etnia. Apesar de sua origem ser controversa, tudo indica que são autóctones. Até o idioma se origina do gaélico irlandês.

Estou obcecado por incluir um personagem Pavee no livro. Mesmo difíceis de observar - assim que percebem que você está olhando para eles, correm na sua direção para pedir alguma coisa falando muito, muito rápido e não desistem até você sair correndo - eles são fascinantes demais para serem deixados de fora. Mas ainda não sei como.

Descobrirei.


***



Tenho almoçado ou jantado com alguma freqüência no restaurante China House da Parnell Street. Há muitos restaurantes orientais nessa região: chineses, coreanos, tailandeses. Já comi em dois deles, mas não achei grande coisa. Muita gordura, pouco sabor, garçons antipáticos. Na China House é diferente, e melhor: ao contrário dos outros, lá sou sempre o único cliente ocidental. Talvez porque iguarias como baby octopus frito com molho de feijão preto fermentado não sejam atrativas pra todo mundo, mas hey, eu gosto de aventura.


***



Momento administrativo
Agradeço aos gloriosos Dantessaço e Carmencita por apontarem os erros de revisão no post anterior (a propósito, vocês não perceberam um erro de concordância no segundo post e um erro factual no terceiro, na parte do mala de bengala; passem no RH agora mesmo, sua relação com esta empresa termina aqui). Mas eu já tinha percebido esses problemas. Já me torturei, já culpei meu transtorno de descompasso bilíngüe, mas no fundo não existe desculpa. Mesmo rubro de vergonha, não corrigirei.

Motivo? Escrevo os posts numa condição mui precária. Meu velho notebook pára de funcionar quando bem entende. Às vezes resolve bloquear grupos aleatórios de teclas. Nunca são as mesmas. Não faz sentido algum. Preciso deixar o bicho sozinho num canto, resolvendo sozinho seus problemas existenciais. Quando ele deixa o teclado em paz, o ponteiro do mouse começa a flutuar a esmo pela tela ou estacionar num dos quatro cantos, resistindo a qualquer tentativa de controle. Faço de tudo para ele se acalmar, uso de paciência e firmeza, mas nem sempre funciona. Sei que vai soar ridículo, mas lidar com tanta inconstância enquanto se tenta escrever um texto gera um desgaste emocional considerável.

Hmm. Relendo esse parágrafo, suspeito que meu notebook é mulher.

Mas enfim: quando termino um post, não mexo mais. Nem releio, para não sofrer ao tentar corrigir alguma coisa e ter que enfrentar a rebeldia de um ponteiro de mouse. Minha opção seria escrever tudo à mão e digitar o post direto no lugar onde acesso a rede mundial de computadores, a chamada internet. Mas isso nunca vai acontecer. Nunca. Mais fácil o dedo do Lula crescer de novo. Não tenho envergadura moral para digitar um post rodeado de adolescentes peidorreiros jogando World of Warcraft e gente berrando no Skype em todos os idiomas indo-europeus. Isso sem falar nos acentos. Assim sendo, ou levo o post prontinho no pendrive ou nada feito.

A propósito, fiz uns videozinhos com planos de mandar pro YouTube e colocar no blog, mas tentar editar vídeos com este computador é uma piada. Simplesmente não dá. Enfim, façam como eu: tolerem, por favor. Prometo não abusar, ao contrário do Yorick.

(Por que diabos fui dar logo esse nome pro notebook? Em resumo, digamos que se trata do personagem mais cadáver da história da literatura: apud SHAKESPEARE, William. Hamlet; STERNE, Laurence. Tristram Shandy. Sério, mais pateta que eu não há, não houve, nunca haverá).


***



De resto, ruivas.


***


Dé Luain 8 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Dois

Ítaca1 [sábado, 06/10/07]
Onde o narrador se furta a relatar um incidente que consumiu páginas e mais páginas em caligrafia apertada, mas oferece em troca duas anedotas e um punhado de informações e curiosidades aleatórias.

Hoje não choveu em Dublin. Nem ontem. Tampouco anteontem ou no dia anterior.

Encaro meus três guarda-chuvas com uma expressão que nem eu mesmo consigo decifrar.

***


Quando comecei a digitar, pretendia contar algo que me aconteceu hoje cedo ao norte da Parnell Square, bem ao lado do Garden of Remembrance, quando eu voltava de minha rápida visita ao número 7 da Eccles Street2. Fiquei tão desnorteado que só consegui pensar "a terrible beauty is born". Naturalmente, logo em seguida me senti um imbecil por apelar para Yeats no lugar mais óbvio para fazer uma coisa dessas.

Apertei o passo e fiquei ainda mais zonzo ao aspirar o cheiro de peixe do dia anterior na Moore Street. Resolvi me abrigar no ILAC Centre. Shoppings são como aeroportos, iguais em qualquer lugar. Menos em Alta Floresta, mas não quero divagar. Sentado num banco em frente a uma loja de artigos esportivos3, rabisquei onze páginas de garranchos miúdos no meu bloquinho, tentando me acalmar, registrar a experiência, as idéias e sensações. Não funcionou tão bem quanto eu gostaria. Nunca funciona. É por isso que se insiste: pela esperança de um dia conseguir. Estou falando de ficar calmo, claro. E mentindo um pouco.

Tudo que escrevi seria um post, mas - alas! - não mais será. Resolvi que não seria possível deixar o incidente de North Parnell Square de fora do meu livro dublinense. Mas nunca revelarei o que aconteceu. Nunca. E por que simplesmente não fiquei de boca fechada e contei tudo isso para deixar vocês curiosos?

Porque eu não valho uma vírgula, ora. Como todos os escritores. Aprendam e perdoem.




***


É praticamente impossível fazer o ouvido se acostumar ao inglês em Dublin, especialmente quando você está baseado ao norte do Liffey. Escuto no mínimo sete idiomas diferentes todos os dias, além do inglês falado com os mais diferentes sotaques e níveis de proeficiência. "Sorry?" é a palavra mais útil no meu vocabulário. Quase nunca compreendo o que me é dito na primeira vez, quase nunca entendem de primeira o que digo. Exceto quando falo com um dublinense, mas na parte norte da área central de Dublin os dublinenses são tão raros quanto leprechauns. E os que existem não são muito de conversa, exceto quando resolvem gritar "are ye lookin at me or waiting on a feckin bus?" olhando para o nariz de um albanês qualquer.

***


Ontem à noite, depois de jantar num restaurante coreano da pequena Chinatown da Parnell Street, resolvi passar na deli da esquina com a O'Connell4 para comprar uma gengibirra. Não eram nem dez e meia da noite e a rua já estava completamente em chamas. Não sei bem de onde, mas os dublinenses tinham surgido. Ainda em minoria, mas pelo menos estavam lá. Nos trezentos metros que separavam o restaurante da esquina com a O'Connell, precisei desviar de quatro bêbados semicomatosos na calçada. Também pareciam dublinenses - certamente northsiders - mas também não estavam em muitas condições de conversar. O último deles até tentava falar sozinho, mas tudo que conseguia era erguer um par de dedos. "Per benedictionem!", pensei e não impedi que uma careta surgisse no meu rosto, abortando o sorriso. Preciso controlar meu vício em associações livres.

Eu e os bêbados éramos as únicas pessoas sozinhas. Nos pubs, nas calçadas, em todos os lugares, só haviam grupos. Estar sozinho nunca me incomodou em meus trinta e três anos de vida, mas em Dublin pode ser um problema. Primeiro porque o sujeito fica menos estimulado a ir aos pubs, locais eminentemente sociais. Ninguém, exceto velhos alcoolistas irlandeses, vai sozinho a pubs para ficar bebendo num canto. E mesmo esses últimos vão sempre ao mesmo pub que freqüentam há setecentos e quinze anos e resmungam quando um forasteiro entra pela porta. Estão sozinhos, mas acompanhados pelo hábito, pelo ambiente. Em Dublin, beber sozinho é muito chato e chama muita atenção, o que nos leva ao segundo problema.

Caminhar sozinho à noite no centro de Dublin não é muito recomendável. Especialmente depois que os pubs fecham. Ainda mais ao norte do Liffey. Pior ainda se você for estrangeiro. Sei que espancamentos rituais sem sentido algum são um esporte gaélico por excelência - Francis Begbie que o diga - e prefiro manter essa informação no meu cérebro, ao invés de compartilhá-la com meus ossos.

Por isso peguei um táxi quando voltei à noite de Temple Bar, o "distrito boêmio" (guias de viagem) ou "pubbing center ao ar livre para turistas" (Daniel Pellizzari). Mais fake que Temple Bar, só sushi com cream cheese. E, por ora, isso é tudo que tenho a dizer sobre o local. Voltarei, lógico, porque sou um tanto masoquista e ainda tenho coisas a explorar por lá. Penso em escrever um guia sobre observação de ingleses embriagados escorregando em poças de vômito.

Mas enfim, não esmoreço. Começo aos poucos a desbravar a inner city e ainda terei sucesso na busca d'O Verdadeiro Pub. Serei barrado na entrada, lógico. É o correto.

Mas eu ia falar da gengibirra.

***


Entrei na deli e peguei minha gengibirra (with fiery hot Jamaican root ginger). Quando fui pagar, o caixa oriental disparou, meio rindo:

- Eu sou coreano. Ele - apontando para o outro caixa oriental - é chinês. Consegue ver a diferença?

Oh. Interação. Sensacional.

- Olha - comecei, mas fui interrompido por um sotaque meio impertinente às minhas costas.

- De onde você acha que eu sou? - perguntou um magrelo com gel no cabelo e abrigo esportivo branco e vermelho. Pelas cores, eu chutaria "inglês".

- Irlandês - tentou o coreano, me decepcionando. Esse aí não deve jogar Starcraft.

- Não, sou inglês - era fácil, poxa. Então o inglês puxou pelo braço uma garota pequenina e bem-vestida que por algum motivo insondável parecia estar com ele. - E ela?

- Inglesa? - o raciocínio do coreano era linear demais. Sem dúvida não joga Starcraft. Abominei.

- Não, francesa.

- E eu? - perguntei, num raro momento "também quero brincar".

- Russo? - chutou o coreano, após me olhar de cima a baixo.

Controlei o risinho de satisfação.

- Na verdade eu sou coreano - respondi, estendendo a garrafa de gengibirra e 1,40 euro em moedas.

Só a francesa riu.

***


Segui em frente pela East Parnell Square e quando estava perto de virar à direita em Gardiner Row, que em cinquenta metros vira Great Denmark Street, que na metade de sua extensão - esse tipo de coisa é normal em Dublin - muda mais uma vez de nome e vira a "minha" rua, Gardiner Place, enxerguei um negócio esquisito. Um mar de pessoas virava a esquina, jorrando para cima de mim.

Entrei na Great Denmark5 e precisei sair da calçada. Era muita gente, muitas línguas. Às 23h, o que em Dublin equivale a umas 3h da manhã no Brasil. Tentei seguir em frente, mas para cada passo que avançava, recuava uns três. Acabei me rendendo às evidências e fui para o meio da rua, mas mesmo assim continuava esbarrando em pessoas. Já mencionei que era muita gente? Era muita gente.

Ser a única pessoa caminhando no sentido oposto daquela massa quase compacta de criaturas tinha um quê de humor. Era quase pastelão. Por outro lado, era também uma metáfora - óbvia, heavy-handed e meio pedestre, but still - do tema central do meu livro dublinense. Fiquei muito satisfeito com aquilo tudo6 e segui meu caminho, segurando a gengibirra.

Depois de uns bons quatro minutos e meio7 cheguei na Lyndon, minha base em Dublin. Passei pela porta amarela e perguntei ao duty manager noturno, que é polonês como toda a equipe que cuida do lugar:

- Teve algum show aqui por perto, né?

Esse duty manager é o meu polonês-do-Lyndon favorito. Ele parece sempre muito animado com o que faz e ri bastante. Mesmo. Usa risadinhas curtas e graves à guisa de pontuação até para repetir o número do meu quarto quando me entrega a chave. E sempre termina qualquer frase com thank you. Gente boa.

- Ah (haha) sim (haha) sim (haha) The Police (haha) acho (haha) obrigado (haha)

Claro. Lembrei que existe um estádio ali por perto. Dezenas de milhares de fãs suados do Police escoando por Gardiner Place. Em sentido oposto, um míope e sua gengibirra. Quase um filme épico.

Aproveitei para perguntar ao duty manager quando meu guarda-roupa seria consertado, porque eu continuava sem ter como pendurar os cabides. Quando me dei conta, as palavras my closet is still missing a pole8 já tinham deixado minha boca. Deus meu do céu. Jesus, Maria, José e o bondoso burrico que os salvou de Herodes. Meu cérebro virou mingau de aveia, esmigalhado pelo peso de dezenas de associações livres.

Mas o polonês9 apenas riu. E riu de novo. E disse:

- Ah yeah (haha) yeah (haha) yeah (haha) I'll fix it tomorrow (haha) thank you (haha)

Hm. Ih, rapais. Por via das dúvidas, amanhã vou pedir pra trocar de quarto.

***


Epílogo cantante: logo que entrei no quarto 16 senti vontade de voltar pra rua, me postar de frente para o dilúvio humano e berrar coisas como DE POLIS DEY CAN BITE DE BACK OF ME BOLLIX! e FECKIN STING IZA DONKEYS TEZTICLES!, tudo intercalado com gritos de JAYZIZ I'M CRAIC!

É o que faria um dos personagens do meu livro. Eu já tinha cruzado por vários de seus amigos, especialmente quando fiquei vagando pelas Liberties para testar minha sorte, mas ontem encontrei o safado em pessoa na Ha'penny Bridge. Quando, bem na minha frente, ele chutou o copo de papel cheio de moedas de um junkie distraído e berrou JAYZIZ THAT WAS GRAND!, pensei "olá".

***


Só para constar: recuperei minha mochila das entranhas dos armazéns da Aer Lingus. Yay for clothes.

***




***




1 Aqui haveria uma nota de rodapé muito longa, explicando algumas particularidades de Dublin - especialmente a divisão norte/sul - e apresentando a região em que estou baseado. Teria até um pouco de História e umas fotos, vejam só como sou didático. Mas olha, esse post já está longo além da conta. Admitam. Fica para o próximo, prometo. Essa decisão administrativa destitui o título "Ítaca" de qualquer sentido, mas quem está interessado em coerência?

2 Como ninguém é obrigado a saber: 7 Eccles Street é o endereço da casa de Leopold e Molly Bloom em Ulysses. Fica aqui pertinho. Existia realmente uma casa no local, mas foi demolida nos anos 1990 para a construção de uma nova ala do Mater Hospital. Tudo bem, botaram uma plaquinha na fachada. Ficou assim, ó:



3 Na vitrine, uniformes da seleção irlandesa de rúgbi em oferta. Quase comprei um. Os garotos acabam de fazer muito feio na Copa do Mundo, mais ou menos como a França na Copa de 2002. Comoção nacional, pelo menos dentro dos pubs. Dos pubs que têm irlandeses dentro, claro. Tirando um ou outro, não existem na área central de Dublin, seja ao sul ou ao norte do Liffey. Ainda estou aprendendo a me orientar pelos subúrbios sem me arriscar a ter a cabeça decepada.

4 Em tese, a avenida mais larga da Europa. Na prática, tem no máximo um terço da largura da Nueve de Julio, em Buenos Aires. Ah, claro, Buenos Aires fica na América do Sul. Perdão pelo lapso argentinista. Mas enfim, parece que a tendência medieval a abrir ruelas estreitas deixou marcas no psiquismo local, a ponto de distorcer o conceito de largura. De qualquer modo, são seiscentos metros interessantes e muito movimentados. É na Lower O'Connell que fica o General Post Office, onde o pessoal do Levante da Páscoa se abrigou em 1916 enquanto a rua era esmurrugada por bombas inglesas. Dá pra ver as marcas na fachada, é bonito.

5 E, como sempre, olhei pela janela do prédio da esquina e enxerguei o mesmo monitor, com a mesma tela azul de erro do Windows. Vejo isso todos os dias, desde que cheguei. Não importa a hora: o monitor está sempre ligado, sempre na tela azul da morte. Preciso tirar uma foto, mas sempre esqueço. Fico distraído imaginando coisas como "bah, aposto que a pessoa que mora aí morreu há uma semana engasgada com um scone na hora do chá e ninguém percebeu, já deve estar cheirando mal, será que consigo sentir se chegar mais perto da janela? Não, peraí, li no Irish Independent aquela notícia sobre a mulher que chegou do pub e se estatelou no chão da sala, onde morreu afogada em vômito, parece que isso acontece bastante por aqui, deve ter sido isso" etc.

6 Meu primeiro sábado em Dublin ficou marcado como o dia em que comecei a encontrar pela rua os personagens que estava inventando. Dois no mesmo dia, e dos principais. E depois ainda me acontece isso. Spooky shite.

7 Eu mediria a distância exata se pudesse contar com o Google Earth. Como não é o caso, vocês terão de se contentar com minha noção de passagem de tempo. Ao tentarem decidir se sou confiável ou não, lembrem sempre que sou canhoto.

8 É bobo, eu sei, mas estando em Dublin não podia ser diferente. Joyce não foi um mongo-alegre obcecado por rimas e trocadilhos à toa. Sua estátua na esquina da O'Connell com a Henry Street, a propósito, é mais conhecida como "the prick with the stick". Se você marcar um encontro na estátua do Joyce, ninguém vai entender. É "the prick with the stick" e ponto final, are ye lookin for a claim? No meu livro vai aparecer como "o mala de bengala", se eu não encontrar tradução melhor. E tem mais: a excelente estátua do Wilde em Merrion Square é "the fag on the crag" (no livro, "a bichona na pedrona"). Anna Livia não existe mais, deu lugar aos 120 metros de altura da Spire - também conhecida como "monumento aos junkies dublinenses". Mas quando ainda servia como ponto de referência, chamava-se "the floosie on the jacuzzi". Compro bagels sem glúten no Itsabagel do Epicurian Food Hall, quase na frente das "hags with the bags". Enfim, todas as estátuas de Dublin têm um apelido infame. Todas. Isso explica Finnegans Wake. Explica muitas coisas. Coisas demais.

9 Note to self: preciso começar a perguntar o nome das pessoas.

Dé hAoine 5 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Um

Balor1 [quarta-feira, 03/10/07]
Onde o narrador se encontra com a versão contemporânea de um antagonista mitológico, vence a adversidade e apreende as propriedades mágicas da falta de sono


Hoje choveu em Dublin, mas o céu abriu e ficou azul assim que entrei no ônibus que me levou do aeroporto à parte norte do centro da cidade.

Mas não foi assim tão simples.

***


Informação relevante: na mitologia irlandesa, mais especificamente nos ciclos relativos aos Tuatha Dé Dannan, existe um sujeito chamado Balor Mau-Olhado, rei dos gigantes Fomori. Páreo duro, o cidadão.

***


Após catorze horas insones nas entranhas de um par de charutos metálicos voadores, acompanhado no primeiro por um comissário de bordo afetadíssimo que parecia um clone holandês do Rocco Siffredi, arrastei meu corpanzil e minha mochila até o guichê da imigração no aeroporto de Dublin. Ali meu passaporte virginal seria maculado pelo carimbo do visto que permitiria minha entrada e permanência em território irlandês.

Só que o funcionário da imigração não dava nenhum sinal de estar inclinado a acreditar que eu estava entrando no país como visitante. É um efeito do recente crescimento acelerado da economia irlandesa: nem o custo de vida altíssimo conseguiu limitar o crescimento da imigração. Das imigrações: legal e ilegal.

Pelo que sondei até agora, quem ganha o troféu da imigração legal são os chineses, os nigerianos e os poloneses. Mas o troféu da imigração ilegal, amiguinhos, é como a Jules Rimet: esse ninguém tira do Brasil, a menos que pretenda derreter. Legiões de brasileiros têm ingressado na Irlanda, quase sempre para "estudar inglês"1, e nunca mais saem. Em Gort, uma cidadezinha próxima da costa oeste da Irlanda, o português brazuca já virou praticamente o segundo idioma local.

Tanta malemolência dos representantes do Bananão deixaram as autoridades aqui da Batatinha em alerta. Uma semana antes da minha viagem, o principal canal de tevê do país exibiu um especial sobre o crescimento do número de imigrantes ilegais. Entre outras coisas, sugeriu que o controle da porteira passaria a ser feito com mais rigidez. A única nacionalidade citada nominalmente como problemática foi a brasileira.

E eu, bem, eu sou brasileiro.


***



Consegui me manter relativamente tranqüilo até o funcionário começar com os golpes baixos.

Eu já tinha confirmado que sim, sou descendente de italianos. Já havia mostrado minha passagem de volta para o Brasil, o seguro-viagem, a reserva da hospedagem, dinheiro, cartões. Respondi onde moro no Brasil, informei a distância exata de Porto Alegre a São Paulo em quilômetros. Confirmei que aquele era realmente meu primeiro passaporte e que estava fazendo minha primeira viagem à Europa. Por algum motivo, meus cheques do Banco do Brasil e meu cartão da Unimed exercem um fascínio inenarrável em funcionários da imigração irlandesa. Deve ser a combinação suada entre verde e amarelo. Também respondi que não, eu não conhecia ninguém no país, em todas as vezes que ele fez essa pergunta. E foram mais de três.

Mesmo assim ele não parecia nada feliz. Balançava a cabeça, repetia no, no, no num tom de voz um tanto funéreo e me olhava nos olhos como se eu fosse o maior aplicador de sambarilove da história da espécie humana. Então veio o golpe baixo:

- Você disse que trouxe x em dinheiro. Mas aqui só tem x-y, o resto está no cartão. Cartão não é dinheiro. Por que você disse que tinha trazido x em dinheiro?

Ah, sai dessa. Era muito malabarismo retórico para minha cabeça totalmente transtornada de sono. Eu estava fedendo a jet lag. Percebi que ele estava jogando verde, tentando forçar uma contradição para ver como eu reagia. "Não estou acostumado a falar inglês" foi a melhor resposta que consegui dar sem recorrer ao "também não precisa apelar pra escrotidão aplicada, bi-chô" que nesse momento já passeava a mil pelas circunvoluções cinzentas do meu melão encefálico.

- Você se confundiu, foi isso? - ele quis saber. Yeah, respondi já sem muito ânimo. Então ele perguntou mais uma vez o que eu tinha ido fazer na Irlanda e senti vontade de voltar pra casa sambando de bombacha em cima de um camelo flutuante.

Todos os passageiros não-europeus do meu vôo já tinham passado pelos guichês, até mesmo a família africana. E eram umas cinco gerações muito coloridas de uma mesma família que parecia apreciar bastante esse negócio de se reproduzir. Aí considerei minhas opções, ambas verdadeiras. Não que isso parecesse fazer diferença. Eu podia apelar para a emoção e dizer "escuta, eu sou casado, minha mulher está grávida e meu filho nasce em dezembro, por que demônios vou querer ficar ilegalmente na Irlanda?"

É, não era uma saída muito inteligente. Vai que o funcionário me achava com cara de alguém que resolveu ganhar uns cobres na Irlanda lavando pints para sustentar mulher e filho no Brasilzão? Sei lá.

Então bueno, a única saída que me restava era fazer o que eu menos queria: explicar o Amores Expressos.

Bastou eu dizer "olha, fui contratado para escrever um livro que se passa em Dublin, vou passar um mês aqui para pesquisar" para a expressão do funcionário se transmutar. Como num clichê de romance esloveno, o antigo funcionário parecia ter se desvanecido em fumos invisíveis e teve seu lugar tomado por um duplo mais bem-humorado. O sósia fanfarrão cruzou os braços, me olhou de novo nos olhos, agora como quem pensa "essa desculpa é nova" e fuzilou:

- Tem alguma prova disso?


***



Obviamente eu não tinha prova alguma, só meu semblante irresistível, minha simpatia lendária e minha conversa envolvente. Mencionei o site do projeto, sabendo que de nada serviria. Que tipo de prova ele queria, um contrato com tradução juramentada? Segurei o away tae fuck, mate que me ejetaria em dois segundos pro amor eterno e os raios vívidos do Braza e encarei o interrogatório com calma. Algumas respostas:

a) Não, eu não me considero famoso;
b) Sim, é provável que meu nome seja familiar para quem se interessa por literatura brasileira contemporânea;
c) Que tipo de livro se escreve em um mês? Olha, vários. Mas não é o caso. Como já falei, estou aqui para pesquisar, lembra?;
d) Não, não fui eu que escolhi Dublin como destino;
e) Desculpa, não lembro todas as cidades de cor. Mas posso tentar. Deixa eu ver: Tóquio, Berlim, Cairo, Buenos Aires, São Paulo, Praga...;
f) Ah, que cidade eu escolheria se pudesse? Olha, acho que Dublin, mesmo, ou...;
g) É que eu gosto muito da Irlanda e da literatura irlandesa.

E a partir da letra g, como costuma dizer meu pároco, fudeu, gaúcho. O funcionário da imigração era formado em Literatura.


***


O dublê esloveno deu lugar a um irlandês realmente simpático e bem falante, deveras empolgado em discutir literatura. Falamos de Swift, Beckett, Wilde, Joyce, Yeats, O'Brien. Sobrou até pro Roddy Doyle. Ele3 acha "The dead" overrated, enquanto eu concordo com a aclamação geral. Não resisti ao ímpeto de corrigir quando ele falou "A decent proposal" ao invés de "A modest proposal". Conversamos sobre minúcias de tradução literária, usando "Ulysses" em português brasileiro como estudo de caso. Ele falou mal de Camus, disse que quase toda a literatura francesa o deixa com uma sensação de perda de tempo e que também não acha a irlandesa grande coisa. Depois me emprestou a caneta e me estendeu um landing card para eu anotar o endereço do site do Amores Expressos. E minha pequena batalha de Moytura terminou assim:

- Ok - ele disse. - Qual dia você volta, mesmo?

- Dois de novembro - falei.

- Então vou dar um visto até essa data.

- Legal. Só preciso disso, mesmo.

- Hein? - bad cop voltou à tona por um segundo.

- Só preciso disso, mesmo - repeti.

- Seu inglês é muito bom - ele disse.

- É que estou com sono.

Aí ele riu e eu entrei oficialmente na Irlanda.

***



Em seguida fui buscar minha bagagem e descobri que, ao contrário de mim, ela não tinha chegado no país.





1 Atenção para a ênfase, por favor. Imagine alguém fazendo aspas com os dedos. Isso, bem desse jeito.

2 Ele, o funcionário da imigração. Roddy Doyle acha overrated a obra inteira do Joyce, não apenas "The dead".

3 Céus, não posso enganar vocês. Na verdade esse não foi nosso último diálogo. Depois que passei pela porteira do Eire, carregando mil coisas nos braços, me agachei para organizar a mochila. Ao perceber que estava com a caneta do funcionário, devolvi.

- Sua caneta - eu disse.
- Oh. Obrigado. Eu gosto dessa caneta - ele respondeu.

Dé Máirt 2 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Zero

Prólogo
Onde o narrador faz a gentileza de fornecer uma informação que se há de provar mui relevante nas próximas três dezenas de dias e faz sua saudação inicial.

Hoje choveu em Dublin.

***


Saio hoje à tarde de São Paulo, chego amanhã à tarde no Eire. Levo três guarda-chuvas na bagagem, porque - como os druidas, ao menos de acordo com o que aprendi na adolescência1 - gosto de tríades. Por ser um tanto obsessivo, já estou há nove2 dias vivendo no fuso horário de Dublin.

Olá.

1 Como todos devem saber, e se não o sabem que o saibam agora, coisas aprendidas na adolescência não são exatamente confiáveis. Mas como o senso comum também pontifica que o apego emocional tende a vencer o apelo da sensatez, então pronto.

2 Quod erat demonstrandum: três vezes três. Sei muito bem que essa mania é meio ridícula3, não precisam me olhar desse jeito e inflacionar meu constrangimento.

3 À guisa de desculpa esfarrapada, nasci em três de março. Também posso reduzir o terceiro elemento - meu ano de nascimento - ao número 3, para completar a tríade trinária. Só não faço isso em público porque sou um homem recatado.

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