amores expresos, blog do Daniel

Dé Máirt 23 Deireadh Fómhair 2007

Diário da chuva em Baile Átha Cliath: Quatro

Fishygods [segunda e terça-feira, 08 e 09/10]
Onde o narrador exibe sua habilidade contábil, relata sua primeira conversa completa com um nativo e registra ainda outros comentários, inclusive acerca da barba que ostenta neste semestre.


Não sei se hoje choveu em Dublin, porque ainda não levantei da cama para abrir as cortinas.

Mas sei que, como eu imaginava, o descompasso entre a cronologia deste diário e a linha de tempo da viagem ficou gigantesco. Tudo bem, é assim que funciona.

Posso resolver as coisas informando que ontem, segunda-feira, dia 22 de outubro de 2007, caiu a primeira garoinha em Dublin desde que entrei no ônibus do aeroporto.

Meus guarda-chuvas? Dois, por despeito, já foram sacrificados ao Deus do Lixo.

***




Comecei a escrever este post treze dias atrás, mas acabei interrompido por um excesso de idéias para o livro dublinense e pela chegada de Estela, Maria e suas câmeras, que passaram quatro dias na capital da Batatinha1. Muitíssimo bem-vindas, as duas interrupções.

Há treze dias que parecem oitenta e cinco, escrevi o seguinte:



Uma semana calado em Dublin. Não fiquei totalmente quieto, claro. Sempre que digo alguma coisa, porém, registro no meu bloquinho. Assim sendo:

* Falei "sorry" 418 vezes, mas - falha horrenda - não tabulei quantas dessas ocorrências tinham entonação interrogativa.
Sorry;

* "Thank you" e variantes: 381. A última foi após receber a chave do quarto 9 há alguns minutos; a penúltima foi um pouco antes, quando recebi de uma loira barangosa um folheto no qual uma loira fubanguenta exibe a busanfa como se sofresse de hiperlordose. Vale uma
lap dance grátis no LaPetite, aqui do lado. Gratuitade de puteiro: maior conto de fadas não há;

* Pedi "a pint of cider, please" onze vezes, incluindo variações resmunguentas como "pint o'bullmers pl's". Repeti "no toast, please" e "tea, please" exatas sete. "Curry chips, please", três. "Plain vanilla shake, no malt please", cinco. "China House for teh win", uma. Em voz baixa.

E oquêi, melhor não entediar vocês. Perdão.

De resto, tive quatro conversas completas. Primeiro com Balor, na imigração. Depois com a Sylvia aqui da Lyndon, que é uma excelente pessoa mesmo gostando de Thomas Mann. Considero uma quarta conversa a tentativa de interpretação simultânea da garçonete míope e adorável do China House - belas mãos - quando percebeu que eu não tirava os olhos da programação cantonesa da tevê. E a quinta foi com o Steven, em Howth.


Nestes dez dias já falei bem mais, com diversas pessoas e num punhado de idiomas. Como brincou a Sylvia dia desses, agora eu até tenho voz. Antes eu passava tanto tempo quieto - às vezes dias - que minha voz falhava e saía miudinha quando eu tentava dizer alguma coisa. So much for pathos.

Mas a quinta conversa - e primeira com um irlandês, já que Balor é uma criatura mitológica mesmo sendo funcionário do Estado - foi mesmo com o Steven, em Howth.



***



Um pouco antes de descer do trem, escutei pelo alto-falante o nome do lugar em inglês e gaeilge: Howth, Binn Éadair. Revisei meu arquivo mental para "Irlanda: Dublin: Howth". Encontrei mais ou menos isto:

Atual subúrbio litorâneo de Dublin, antigo porto e aldeia de pescadores, último refúgio dos vikings que ficaram na Irlanda após a derrota para Brian Boru, como era mesmo o nome do rei deles?, o lugar - Howth Castle and Environs - para onde riverrun nos leva por um commodius vicus of recirculation no primeiro parágrafo do Finnegans Wake.

Pronto. Era tudo que eu sabia. Não era muito, mas enfim. Desci do trem.



Ainda que os subúrbios se espalhem por quilômetros, a região central de Dublin é pequena e compacta. Mesmo com prédios baixos, é um pouco sufocante. Não se enxerga o horizonte, não há espaços vazios. Onde não há uma muralha de prédios bem grudadinhos, há uma pororoca de criaturas de todas as formas, tamanhos, cores, indumentárias, religiões e idiomas. É difícil respirar.

Quando abri a porta da estação em Howth, a primeira coisa que enxerguei ao olhar para a esquerda - sinistro vício de canhoto - foi um imenso espaço vazio, tornado ainda mais interessante pelo vento forte, silencioso e gelado que temperava o horizonte cinzento. Menos de dez pessoas à vista.

Eu tinha chegado em casa.

***



Mas o problema é que nunca gostei de mar.

Depois de caminhar a esmo por quase duas horas, subindo escadarias e dando voltas em faróis, comprei um esquifezinho de curry chips e sentei num banco em frente ao mar. Fiquei ali aproveitando o frio úmido, o vento salgado e o tempo ruim, ouvindo os gritos irritantes das gaivotas, comendo batatas fritas com curry e tentando entender por que demônios eu estava gostando do mar.

Tinha chegado ao meu limite. Não conseguiria dar mais nenhum passo se não chegasse a uma resposta satisfatória para aquele mistério. Sei que é patético, não preciso que me digam isso por email. Obrigado. Se você consegue viver sem passar o tempo todo analisando tudo que está vendo, pensando e sentindo, sorte sua.



Mal tinha chegado na metade das curry chips quando um piá sentou do meu lado no banco em frente à praia. Era o Steven.



***



Parêntese para a barba que ostento neste semestre:

Não é uma barba, é um cavanhaque. Meio grisalho, comprido, pontiagudo. Com uns dez centímetros de comprimento, é minha homenagem aos anos 1990.

(Como percebeu minha amiga-cunhada-comadre que escreve poemas épicos sobre piratas em português pseudo-arcaico, Mariana E. Messias: "Daqui a no máximo cinco anos vai acontecer o revival dos anos noventa. Não é um horror? Como conseguiremos viver estando na moda de novo?" Fato. Céus, meu hipocampo ferve).

Essa informação parece totalmente irrelevante, mas não é. Ahhh, como é fascinante A Magia da Escritatm, admitam.

Fim do parêntese para a barba que ostento neste semestre.


***



Nem consegui engolir as batatas.

- HELLO, MISTER! - gritou o pirralho, mostrando covinhas nas bochechas e batucando sem parar.

- Hã. Oi - respondi, quase engasgado. Olhei de soslaio pro guri. Apesar da hipercinesia, parecia comunicativo demais para ser autista. Apesar de visivelmente afetivo, não parecia ter Down. De qualquer modo, claramente não era uma pessoa comum. Aliviado, relaxei.

De repente a batucada parou. Fiquei olhando pro mar. O guri ficou olhando pra minha barba.

- O que é isso? - apontou o dedo pra ponta do cavanhaque.

- Isso? - repeti. Aí pensei "função fática" e sacudi a cabeça.

- É cabelo?

Sorri.

- Sim. É cabelo.

O guri não disse nada, só olhou pra frente e voltou a batucar. Olhei um pouco pros meus pés, depois pro céu e então pras pedras da praia.

- Mister?

- Oi.

- Eu gosto desse cabelo.

- Obrigado.

- Eu gosto desse cabelo.

- Hã. Obrigado.

- Que cabelo legal. Eu gosto.

E recomeçou a batucada.




- Sabe - falei, com uma vontade esquisita de não deixar a conversa morrer. - Quando você for mais velho, vai poder ter um cabelo igualzinho.

- É? - disse o guri sem me olhar nem interromper a batucada. - Igual?

- Igualzinho.

- Legal - aí ele me olhou de novo, com o mesmo sorriso de antes. - Eu gosto desse cabelo.

- Eu também.

Nessa altura senti vontade de sair dali e andar mais algumas horas na direção oposta. Queria fazer alguma outra coisa. Naturalmente, isso fez com que eu começasse a tentar entender por que diabos estava sentindo vontade de fazer alguma outra coisa enquanto estava no meio de uma conversa que por sua vez tinha começado no meio de uma tentativa de entender por que eu estava gostando do mar. Empacado, fiquei olhando pra água.

Aproveitando meu soluço cognitivo, o guri quis saber:

- E você gosta do mar?

Sacanagem.

- Gosto - minha boca respondeu. - É legal.

O guri sorriu e fez um gesto amplo com as mãos.

- Quando você for beeeeeeem mais velho, vai poder ter um mar igualzinho.

Senti uma pressão esquisita nos tímpanos. Uma voz feminina e estridente gritou "Steeeven!" umas quatro, cinco vezes. O guri parou de batucar e se levantou.

- NICE HAIR, MISTER! - disse, e saiu correndo na direção da voz.



***



"Mas putaquioscaiumeuscôrno", pensei. "Isso foi completamente inverossímil".

Aí resolvi que precisava beber.


***



Adentrei completamente estabanado o primeiro pub que apareceu na minha frente, a menos de cem metros do banco. Nem me prestei a calcular quanto tempo fiquei bebendo o mesmo pint em frente a uma janela de onde se enxergava o mar e o a torre Martello da ilhota Ireland's Eye. Precisei ir até Howth para encontrar o primeiro pub em que me senti à vontade.

De vez em quando anotava algumas coisas no bloquinho ou relia outras, amaldiçoando minha caligrafia mutante. Mas na maior parte do tempo fiquei observando um tio barbudo com cara de velho marujo de história em quadrinhos. Gorro, óculos, braços fortes, dedos grossos, um jornal, um pint de Guinness, um jarro com água e limão.

No dia seguinte, sentei na mesma mesa.

***




Que safado esse commodius vicus, bicho.

***


Aproveitei a ocasião para fazer um registro de Edgar, meu fiel escudeiro alado e bicudo, exibindo sua graça e fotogenia em frente às águas gélidas da Baía de Dublin:




Nossa, que pitéu. Foi por conta de semelhantes imagens litorâneas, meus amigos, que se criou a bossa nova.

Aproveito para informar que ele continua mudo. Tudo bem.


***


Sitric. O nome do rei dos vikings que ficaram na Irlanda e se estabeleceram em Howth era Sitric. Lembrei disso ao caminhar pela Asgard Road. Fuck yeah.

***


Levantei da cama e abri as cortinas. Hoje, terça-feira, dia 23 de outubro de 2007, faz sol em Dublin.

***






1 E a gente - Estela, Maria, nossas câmeras e eu - também deu umas voltas pelo interior e seus amoráveis espaços vazios: